Éramos Quatro

Venha conhecer os herdeiros da realeza de Argon

Olá, Viajante! Já pegue sua cadeira (e, talvez, um lencinho?) e fique à vontade para conhecer a família Brunier, a realeza de Argon. Em “Éramos Quatro”, Adam narra a todos nós a história dele e de seus irmãos, os quatro herdeiros da Coroa, e um pouco das aventuras e confusões as quais se meteram enquanto eram crianças.

Caso queira apoiar meu trabalho com a escrita, te convido a conhecer Espírito do Oeste, meu livro de piratas e sereias que está disponível para compra na versão ebook ou física!

Sem mais delongas…

Éramos Quatro

No início, eu era apenas um.

Mamãe contava que nasci pequenininho e muito, muito roxo. Que não chorei, mas que o céu chorava extremamente, em uma das tempestades mais devastadoras que o reino já enfrentou em toda sua existência.

Então, em poucos meses, viramos dois: eu e Sebasthian, criados juntos como irmãos. Na corte, as fofocas corriam rápido; não foi difícil repararem que, mesmo pequenininho, Seb tinha algo em especial – os olhos, os mesmos que papai, as írises douradas com arcos azuis aos quais eu também herdei. Meu pai sabia que as histórias se espalhariam qual fogo em palha, então tratou de pará-las rapidamente. Afinal, os olhos podiam sim ser características do Rei Charlie e de seus herdeiros, mas não eram apenas dele: eram de todo o seu lado da família.

O reino nunca conheceu direito a irmã de papai, minha tia Lysianne, a Princesa de Deniry. Afinal, quando meu pai e minha mãe assumiram o trono de Argon depois da Revolta Popular, ela já era adulta e explorava as montanhas nevadas; o título veio apenas como uma extensão para toda a família nos registros oficiais.

Mas eu e Sebasthian crescemos ouvindo histórias sobre ela e sua coragem ao explorar as montanhas nevadas. Mamãe nos contava sobre a voz gentil dela, papai explicava como Sebasthian havia herdado os cabelos amarelos como as penas de um canário, e, por um tempo, nenhum deles mencionou a morte trágica que deixou Seb órfão, fazendo com que acolhessem ele como seu próprio filho e o criassem como meu irmão.

Vim conhecer a tia Lysianne depois... ela me recebeu de braços abertos e com um abraço apertado e choroso quando completei doze anos e fui morar com ela...

Por alguns anos, fomos apenas nós – eu e meu irmão de coração. Jogando tinta no chão do palácio, ouvindo histórias de dragões e feiticeiros, fazendo Mamãe ficar de cabelos em pé com nossas desventuras; laços de sangue não importavam, não quando a irmandade que tínhamos era tão palpável.

E então, Brianda.

Viramos três – Eu, meu irmão, e nossa pequena raio de sol escarlate, Brianda, a futura rainha de Argon, a Princesa Herdeira. Não que soubéssemos disso à época: não havia uma política certa na monarquia Argoniana para escolher o próximo herdeiro; entretanto, todos esperavam que Charlie escolhesse o primogênito...

Mal sabiam eles, mal sabíamos nós.

Minha conexão com Brianda era totalmente diferente. Papai falava que eu era uma Criança de Eliah, uma criança cheia de sentimentos e guiado pelas emoções, enquanto Bri era meu oposto – mamãe a chamava de Honual-iel, um título carinhoso que as pessoas daqui dão para aquelas que vivem em função da razão, do pensamento crítico, de analisar cada estratégia antes de tomar uma decisão. Bri fazia isso em qualquer situação, aproveitando para ganhar da gente em todos os jogos que envolvessem regras e cartas.

Pensando bem... deveríamos ter notado desde sempre que Brianda seria uma governante melhor do que eu...

Brianda era o complemento da minha alma. Embora o conceito de Almas Irmãs não seja comumente difundido pelas ilhas de Nnanrena, ainda assim havia alguns que contavam histórias sobre amizades, irmandades e, às vezes, até romances que pareciam ir além de meros relacionamentos. Aqueles que são devotos de Ghan’dyr e Draím costumam acreditar fielmente que as deusas costuram almas iguais em pessoas diferentes. Era assim que eu me sentia com Brianda. Eu amava Seb, amava meus pais e os outros amigos que tinha na Corte.

Mas Brianda era meu sol. Enquanto ela estivesse bem e feliz, eu também estaria.

Por pouco tempo, fomos nós três: dois príncipes, uma princesa. E então viramos quatro, com Irina. Ela era uma cópia igualzinha de mamãe: a única herdeira de olhos castanhos, os cabelos loiro-palha cheios como lã. Confesso que ficamos preocupados quando Ina nasceu, com medo dela não querer participar de nossas brincadeiras, com medo da Corte conseguir transformá-la na princesinha mimada que tentaram transformar Brianda - mas, pela segunda vez em menos de um ano, eles não foram sucedidos. Embora Irina fosse, sim, uma princesa em todos os sentidos, mesmo assim ela estava junto de nós em quase todas as traquinagens que eu e Sebasthian colocávamos na cabeça.

Fomos quatro por muito tempo, os Quatro Encreherdeiros como as pessoas costumavam nos chamar – um título que aceitamos de bom grado -, os príncipes regentes de Argon, os filhos de Charlie e Elizabeth. Brincávamos todos os dias juntos, assistíamos aulas inacabáveis, nos revezávamos para fingir estar doente e faltar nessas aulas, ficávamos de castigo na biblioteca...

Éramos quatro quando papai quis começar a treinar os herdeiros para a vida na Regência e passamos a ter aulas de etiqueta e a entender o Tratado de Paz. Éramos quatro quando Sebasthian se apaixonou pela diplomacia e brincávamos de imitar reuniões do Conselho, com direito à papéis espalhados em uma mesa e suco de uva que bebíamos fingindo ser vinho. Éramos quatro quando insisti tanto que fiz mamãe nos levar em uma viagem pelo Arquipélago de Nnanrena, conhecendo os outros reinos e cidadelas. Éramos quatro quando Brianda passou pela fase de garota apaixonada por cavalos, e ainda sinto o cheiro deles e o vento batendo nos cabelos quando galopávamos pelas trilhas da floresta entre Argon e a aldeia de Kón, onde também dançávamos ao redor da fogueira durante os festivais. E éramos quatro quando Irina, aos sete anos, descobriu as espadas e todos passamos a ter aulas de esgrima e arco e flechas; ela tinha um talento nato para derrubar a mim e a Seb no chão de areia, girando o punho da espada habilmente e abrindo um sorriso convencido ao provar que a Nanica do grupo também era a mais forte.

Éramos quatro em toda a nossa infância, crescendo juntos, vivendo juntos, dormindo juntos nos dias de tempestade quando os trovões eram altos demais e se comparavam aos sons dos nossos corações batendo rápido. Éramos quatro quando Brianda quebrou a perna e precisou ficar na cama por algumas semanas, ou quando Irina pegou cendragão e ficou toda empipocada e espirrando fogo pelas narinas; quando Sebasthian cismou em fazer a prova para a guarda real mesmo tendo apenas 11 anos - "apenas para testar" ele disse, antes de acertar quase todas as questões. E éramos quatro quando teimei de estudar magia e nos reuníamos todos os dias em uma das torres do castelo, a qual chamávamos de Esconderijo, para ler tomos antigos e brincar com areia fingindo que moldávamos o Brilho.

Éramos sempre quatro. Nos bailes, eu dançava com Brianda e Seb com Irina, as duas subindo nos nossos pés para rodopiarmos pelo salão, rindo tanto que abafávamos os comentários ácidos da Corte. Nos chás da tarde do Rei, que reunia Conselheiros e seus filhos, ficávamos sempre uns dos lados dos outros, prontos para encrencar com os adolescentes antes que encrencassem com a gente. Seguramos as mãos chorosas uns dos outros no funeral de Méli, a Arqueira de maior posição na Guarda Real, que morreu protegendo minhas irmãs na única vez que papai conseguiu separar eu e Sebasthian delas duas para uma viagem até as fronteiras.

Até hoje, sinto que, se estivéssemos lá talvez Méli não precisasse ter se sacrificado por elas... mas sei que não controlamos a Morte, e sei que tampouco posso mudar o passado.

Aprendi isso alguns anos atrás. Quando ainda éramos quatro, mas uma única noite faria com que eles se tornassem três...

Me lembro vividamente daquele dia. De como a nevasca estava forte do lado de fora, mas as salas internas do palácio estavam aquecidas como sempre; lembro de mim, sozinho no Esconderijo, suor escorrendo pela testa enquanto fazia, pela primeira vez na vida, uma pequena joia flutuar alguns centímetros acima do chão. O coração batendo forte, orgulhoso, feliz, brilhando como um sol, querendo disparar pelos corredores para mostrar para minha família que os anos de estudo estavam finalmente começando a dar resultado.

Mal dei dois passos nos degraus da torre quando o alarme soou, os sinos mágicos anunciando intrusos no palácio. O protocolo era simples: pegar o que eu pudesse e descer o mais rápido possível para o Abrigo Real ou para alguns dos Abrigos Menores dispostos no andar térreo, onde deveria permanecer em segurança até que Papai ou alguém de confiança abrisse a porta.

Já havíamos passado por aquilo algumas vezes, especialmente depois da morte de Méli, então foi fácil barrar o medo de me consumir. Continuei descendo as escadas, impondo mais rapidez nas pernas bambas, e, em um momento de hesitação, achei melhor entrar em um dos Abrigos Menores que ficava mais perto do Esconderijo. Meus irmãos ficariam preocupados comigo, eu ficaria preocupado com eles, mas sabia que estariam todos à salvo no outro cômodo e poderíamos nos abraçar assim que aquela noite passasse.

Aquela maldita noite. Aquela última noite.

Papai e Mamãe nunca descobriram o que aconteceu comigo. O motivo de eu não ter ido para o Abrigo Real. Nunca descobriram o porquê de eu estar fora da cama, desrespeitando a regra do toque de recolher; eles nunca descobriram que, enquanto me dirigia para a ala Norte do palácio, acabei vendo um vulto de cabelos ruivos correndo no jardim. Meu coração, antes batendo tão rápido, pareceu tropeçar, me arrancando o fôlego de uma só vez.

Naquele momento, não cogitei nenhuma outra escolha além de ir atrás daquela que, erroneamente, julguei ser Brianda – sem saber que minha irmã já estava no Abrigo, já estava à salvo, que metade da minha alma sobreviveria àquela noite.

Então, em vez de seguir para um lugar seguro, usei a passagem secreta da Biblioteca para ir para os jardins, o frio me envolvendo no minuto que deixei os muros do palácio.

Nunca cheguei a conhecer Eurus Anna, a mulher de meu irmão, pois ela chegou na Corte de Argon muitos anos depois daquela noite; mas pude observá-la escrever sua história e uma passagem me chamou a atenção. Eurus escreveu sobre como morrer dói – e como ela sabia disso, pois havia sentido cada parte de seu corpo ser destruído de fora pra dentro quando morreu no acidente que a levou até meus irmãos.

Honestamente? Eu concordo com ela. Morrer dói. Pra caramba!

Mas, para mim, não doeu por causa dos ferimentos, da lâmina da espada enfiada na minha barriga, dos ossos quebrados por mãos invasoras que tentavam conquistar o castelo naquela noite. Não foi o frio cortante ao qual fui exposto quando me deixaram jogado nos jardins, ou a sensação de me afogar no meu próprio sangue enquanto as estrelas do céu lentamente se apagavam uma a uma.

Morrer doeu por saber que não seríamos mais quatro. Que, quando a última estrela se apagasse, eu os deixaria como um trio, uma formação que nunca vivemos antes – mas que eles seriam obrigados a aceitar.

No fim das contas, eu nunca os deixei verdadeiramente. Mesmo quando os guardas levaram meu corpo pra meus pais após a invasão, mesmo depois de fazerem os Rituais da Morte e envolverem meu túmulo em pedras novas como o rito pedia, mesmo assim eu estava lá.

Estava lá quando o reino se cobriu de campânulas anunciando minha morte, e estava lá quando as flores foram substituídas naturalmente por lírios-da-chuva – um lembrete da esperança que voltava ao reino. Quando Irina foi condecorada como a nova Arqueira do reino, quando Sebasthian encontrou o amor, se casou e teve uma filhinha linda – que, para surpresa de todos, parecia comigo; estava junto de Brianda quando ela recebeu a Coroa Provisória, a Coroa da Futura Regente, tocando em seu ombro mesmo que ela não pudesse sentir. Abraçando meus pais no aniversário de casamento deles.

Sussurrando o quanto amava cada um da minha família com brisas calorosas quando eles pareciam duvidar disso.

A verdade é que, para mim, ainda éramos quatro. Porque mesmo quando o Mensageiro da Morte, Dyllan, me estendeu a mão e me desafogou, levando toda a dor física embora, parte de mim permaneceria para sempre em Argon: nas esculturas de argila que Mamãe guardava no quarto dela, nos rabiscos nos livros que Papai fingia ignorar, nas pinturas pelos corredores, em cada lembrança da infância de Brianda, Irina e Sebasthian, em cada história que eles contavam...

Para sempre, seríamos quatro: eles três vivos, aprendendo a conviver com a dor da minha ausência, e eu nas estrelas que brilhavam acima do jardim, tomando conta deles.

Espero que tenha gostado! Adam, Irina, Brianda e Sebasthian (além dos outros persoangens mencionados) já aparecerem em algumas histórias antigas minhas que estão publicadas no PlusFiction. A linha temporal nelas está errada e tem muitos erros de Português (todas elas são de 2017), mas caso queiram conhecer um pouco mais da família Brunier, pode encontrá-los aqui, aqui, aqui e aqui.

Mês que vem eu volto com uma (ou, quem sabe, mais de uma…) história para contar. E, se você chegou até aqui… que tal um spoiler dos personagens que conheceremos na próxima edição de Favos de Mel?

Que ventos tranquilos conduzam sua passagem até nos econtrarmos novamente, Viajante!