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O refúgio de Gigi
Inimigas do tempo são obrigadas a conviver em território neutro
Olá, Viajante! Hoje, de supetão, trago pra vocês um conto bônus desse mês! Ainda não é a história do Kale e do Eric como imaginei que seria (e até dei spoiler…), essa daí vem mais para o fim do mês. Dessa vez, lembrei que tenho algumas histórias que não estão postadas em lugar algum, então decidi postá-las aqui! Essa em especial foi escrita em 2023 😄
“O refúgio de Gigi” conta a história de duas mulheres: Gwendolyn, uma Protetora do tempo, e Astra, uma Pirata, inimigas declaradas na guerra do Tempo. As duas acabam encontrando o refúgio de Gigi, um chalé onde uma antiga feiticeira mantém morada, e são obrigadas a respeitar a única regra dela: o chalé é campo neutro, onde brigas pela linha Temporal são proibidas.
Caso queira apoiar meu trabalho com a escrita, te convido a conhecer Espírito do Oeste, meu livro de piratas e sereias que está disponível para compra na versão ebook ou física!
Sem mais delongas…
O refúgio de Gigi
Era uma vez um portal temporal escondido no meio de uma floresta, guardado por Gigi, uma amante da natureza.
Vivendo tanto tempo em um chalé ao lado do limiar temporal, Gigi criou uma única regra para aqueles que quisessem utilizar o portal: o chalé onde morava e os arredores eram um território neutro entre Protetores e Piratas, um local escondido e imune à Guerra. Independetemente de onde e de quando vinham: os que chegavam em sua casa e estavam dispostos a respeitá-la sempre encontravam abrigo e paz entre os livros e frascos que a mulher possuía nas dezenas de prateleiras presas ao redor dos cômodos.
Por anos, Gigi recebeu pessoas em sua casa, curando ferimentos, oferecendo sopas de cogumelos, chá quente e muitos conselhos. As pessoas iam e vinham, e Gigi envelhecia pouco a pouco, a pele marrom enrugando como os veios nas cascas de árvores, os cabelos ficando grisalhos e os olhos perdendo a visão, tornando-se brancos. Mas ela continuou a morar no chalé de paredes de pedra cinza, cobertas de musgo e limo, onde a chaminé estava sempre soltando fumaça por causa da lareira acessa dentro da sala.
Durante toda a vida, Gigi esperou que algo diferente acontecesse, algo que mudaria tudo para sempre – e, com sorte, mudaria também a existência de outras pessoas; foi só quando estava bem velha, com o corpo recurvado para frente e dois gatos instalados permanentemente nas poltronas de seu chalé, que esse algo aconteceu.
*
Primeiro, Astra chegou, com seus cabelos platinados cortados na altura dos ombros, uma franja reta cobrindo a testa, o rosto pintado de vermelho e um cajado preso nas costas. Gigi sabia o que ela era – uma Pirata do tempo, uma transgressora; buscava nas linhas temporais passadas e futuras um jeito de mudar o presente, para o bel-prazer, sem se importar com as consequências para o resto da humanidade.
Gigi não julgava os Piratas.
Astra pediu por abrigo, um pouco de comida e alguns dias em frente ao fogo da lareira. A idosa a deixou ficar, com a mesma condição que dava a todos: o chalé, o portal nos fundos da propriedade e a floresta ao redor eram territórios neutros. O cajado, uma arma poderosa para os piratas, foi posto de lado, apoiado na parede onde, em outras casas, seriam pendurados casacos e chapéus. Por dois dias, apenas elas permaneceram em casa, e, entre conversas despreocupadas, ignoravam a Guerra do tempo que corria ao redor delas, passado, presente e futuro embolando-se.
E então, Gwendolyn atravessou o portal, com o braço coberto de sangue e praticamente caindo desmaiada no meio do gramado, manchando de escarlate as pedras brancas que faziam caminho até a porta.
Astra ajudou Gigi a colocar a jovem para dentro de casa, focando em analisar a beleza na pele marrom e nos cabelos escuros em vez de pensar no uniforme de combate e nas armas que a outra carregava. Ignorou a pintura azul ao redor dos olhos, o distintivo preso no cinto e o brasão estampado nas costas.
Astra sabia que estavam colocando dentro do chalé uma inimiga, uma Protetora do tempo: sempre dispostos a parar os Piratas, sempre dispostos a proteger a linha temporal, independente do que o destino escrevesse com suas linhas tortas. Mas a Pirata respeitava Gigi, e respeitaria a regra imposta, então apenas deitou a jovem na cama onde antes dormia, arrumando os travesseiros de forma a ficarem o mais confortável possível.
Gwendolyn quis matá-la assim que abriu os olhos no dia seguinte.
Ao reparar na Pirata sentada à poucos metros de si, lendo um livro, com os cabelos caindo sobre a face e totalmente desprotegida, a Protetora ergueu-se em um pulo, utilizando-se dos reflexos rápidos dos anos de treinamento para a guerra, e lançou-se sobre Astra. Mas não esperava que Gigi aparecesse no meio delas, a estatura diminuta, a aparência frágil como uma folha no outono, erguendo os braços em rendição e falando em voz baixa, pedindo calma. Gwendolyn se segurou, afinal, machucar inocentes ia contra todos os seus códigos – os morais e os da instituição.
Com a Pirata sorrindo para ela de forma presunçosa, quase como uma provocação, Gwendolyn aceitou o termo de neutralidade da guardiã do portal, e também despôs de suas armas, deixando-as lado a lado com o cajado de Astra.
O clima no chalé era hostil, sempre interrompido por Gigi, que passava cantarolando enquanto regava suas plantas. Às vezes, Gwen olhava para Astra e sentia vontade de sorrir, principalmente quando a velha senhora entrava em casa carregando cestas cheias de cogumelos, mas o gesto morria ao se lembrar que estava na presença de uma pirata. Em outros dias, Astra fazia menção de se aproximar da jovem de mesma idade, oferecer a ela uma xícara de chá ou um dos livros que havia lido, tirados das prateleiras do quarto, mas parava ao sentir a ameaça contida na postura da outra, sempre pronta para atacar, empoleirada no beiral da janela como um gato.
Demorou cinco dias para o ferimento de Gwendolyn começar a sarar. No último, Gigi as deixou no chalé enquanto ia até uma vila próxima em busca de provisões, confiando que as encontraria bem ao voltar para casa. Foi enquanto estavam sozinhas que Gwen sentiu a febre consumir seu corpo, arrastando-a por uma maré de delírios, calor e suor. Astra poderia tê-la deixado ser consumida pelo estado febril, mas, ao olhar nos olhos escuros da Protetora, angustiados, repletos de medo e dúvida, a Pirata não conseguiu ignorar o pedido de ajuda contido neles.
Sentada no chão do quarto, a loira levava periodicamente uma toalha de linho branco até a testa da morena, afastando com delicadeza os cachos castanhos para poder passar a peça molhada por todo o rosto de Gwendolyn. O silêncio tornou-se insuportável e, quando uma tempestade de verão tomou forma do lado de fora do chalé, derramando-se em água, raios e trovões, Astra abriu a boca e começou a falar com Gwen.
Contou à Protetora tudo sobre si. Disse-lhe como a irmã mais nova estava terrivelmente doente, como ela se sentia imponente e como, no ano em que vivia, a cura ainda não existia. Explicou como se tornou uma Pirata (“uma ex-namorada minha me contou dos portais”), e em como só buscava um remédio, um único frasco capaz de salvar a irmãzinha de seis anos que a esperava em casa. Falou de seus hobbies, do amor pela leitura e do pavor do mar, sabendo, no fundo, que estava oferecendo munição suficiente para a Protetora usar como quisesse.
Quando finalmente parou de falar, as bochechas tornando-se escarlate ao notar o olhar da outra sobre si, foi a vez de Gwendolyn abrir a boca e, com a voz rouca e arrastada pela febre, contar-lhe coisas.
Gwen explicou para a Pirata sobre seus avós, os primeiros agentes do governo a se tornarem Protetores. Contou a ela sobre como haviam sido incríveis nos primeiros anos de proteção dos portais, e em como toda a vida de sua família havia sido pautada por isso. Falou da tia, que havia ajudado a cria-la, especialmente após o assassinato dos pais, e em como a raiva contra os Piratas tinha consumido ela pouco a pouco, fazendo-a desejar vingança contra todos que estavam do outro lado da Guerra. E, em um momento de vulnerabilidade, Gwendolyn segurou nos dedos de Astra e disse:
— Obrigada. Pela ajuda e... por todo o resto.
A loira sorriu, carinhosa, e delicadamente tocou no rosto de Gwen, aferindo a temperatura da outra, sentindo a pele macia ainda quente sob seus dedos. Depois, se levantou, com o intuito de preparar um chá ou algo quente para comerem, enquanto a chuva ainda caia do lado de fora; antes de sair do quarto, porém, olhou por cima do ombro e respondeu:
— Disponha.
Quando Gigi chegou em casa, já na madrugada, trazendo os suprimentos como se não pesassem nada, encontrou Gwendolyn dormindo na cama de solteiro e Astra dormindo no chão, em cobertores ao pé da cama, ambas sem a pintura facial que representava seus lados na guerra. A velha reparou no pano úmido, ainda preso entre os dedos da Pirata, e no ferimento da Protetora, coberto com um curativo novo, e ali ela soube.
A mudança que esperou a vida inteira estava acontecendo na sua frente.
*
A partir daquele dia, Gwendolyn e Astra viraram amigas. Não foi rápido, muito menos fácil, mas, em um piscar de olhos, dois meses haviam se passado no chalé, e, estando tanto tempo longe da Guerra e das batalhas, as garotas descobriram que tinham muito mais em comum do que poderiam achar possível. Agora, o chalé era recheado de risadas e cânticos antigos que Gigi as ensinava, contando histórias do passado, de quando seus ossos eram mais firmes e a Terra, segura. Gwen perguntava sobre a irmã de Astra, e ela lhe perguntava sobre seus pais, e a conversa fluía como a correnteza de um rio, descendo todo o caminho até desaguar no mar.
Entretanto, não poderiam ficar ali por muito mais tempo. O ferimento da Protetora já era apenas uma cicatriz no ombro, somada à tantas outras que ela carregava pelo corpo, e a Pirata estava descansada, com as energias renovadas para voltar para a busca da cura da irmã. Foi em uma noite de tempestade, parecida com aquela noite onde tudo mudou, que Gwen anunciou que estava indo embora.
— Você realmente precisa ir? — Astra perguntou na manhã seguinte, sentindo o estômago afundar como um poço sem fundo. Odiava admitir, mas a estranha amizade com a protetora e as estranhas sensações causadas pela voz da outra fariam muita falta.
— Preciso. Se ficar mais tempo, minha tia vai mandar uma equipe de busca atrás de mim. — Gwendolyn riu, prendendo o cabelo em um rabo de cavalo alto; seus olhos, entretanto, encontraram os da Pirata, e Astra soube que havia um fundo de verdade contido na piada. — Se vierem atrás de mim... não sei o que fariam com você. Ou com a Gigi. Não vou arriscar.
A loira assentiu suavemente, entendendo o recado. Levantou-se, caminhando pelo chalé e recolhendo pedaços de Gwen que haviam se espalhado pela casa nos últimos meses: uma escova de cabelos rosa esquecida na pia do banheiro, um anel prateado caído debaixo do sofá, o distintivo de Protetora do Tempo apoiado na mesa de cabeceira, uma camada de pó cobrindo os dizerem encravados nele. A Pirata olhou para os objetos em suas mãos, tão pequenos, tão simbólicos, antes de caminhar até onde a outra estava, guardando tudo dentro de uma mochila.
Suas mãos se tocaram enquanto terminavam de arrumar tudo, e Astra desejou poder parar o tempo naquele exato segundo.
A velha curandeira juntou-se à elas, oferecendo biscoitos assados e potes de cogumelos para sopa, e foi Gigi que manteve a conversa rolando, não deixando que caíssem no silêncio da despedida iminente. Quando chegou a hora, Gigi puxou Gwendolyn para um abraço apertado, com uma força que a Protetora nunca imaginaria existir dentro dos braços finos e enrugados, e depois se afastou, indo em direção do portal para preparar tudo. Deixou-as sozinhas, pois sabia que precisavam daquele tempo.
— O ano que você tá procurando... a cura pra sua irmã, tá em 2054. — A Protetora revelou, pendurando a bolsa no ombro curado. — Quando chegar lá, tenta trocar de roupa, é assim que a gente localiza os Piratas: as roupas deixam um rastro temporal facilmente localizável.
— Você acabou de revelar pra uma Pirata como roubar algo de uma linha temporal? — Astra perguntou de volta, abrindo um sorriso presunçoso da mesma forma como havia feito no primeiro dia que se conheceram. Ela avançou um passo, depois outro, e ergueu a mão para colocar um cacho do cabelo de Gwendolyn no lugar. Seus olhos estavam marejados, pela despedida, mas brilhantes pela esperança dada a ela naquele segundo. — Obrigada.
— Eu... eu que agradeço. Você me ensinou que nem todos os piratas são egocêntricos e caóticos, e me salvou naquela noite. Eu não vou esquecer disso.
Foram até os fundos do quintal do chalé, onde, passando o jardim de flores, um portal temporal existia, guardado pela energia de Gigi; a senhora estava lá, apoiada em um cajado mais antigo do que qualquer outro, as mãos brilhando conforme acertava o ano para a viagem de Gwendolyn. A Protetora se aproximou, abraçando a senhora com carinho, e depois voltou-se uma última vez na direção de Astra.
Uma última troca de olhares, uma respiração mais pesada, e então um único beijo trocado no meio do jardim, um encontro de almas criadas para se odiarem, mas destinadas a se amarem. Gwendolyn foi quem tomou a dianteira de se afastar e, segundos depois, atravessou o portal para longe de Astra, sem olhar para trás.
Mas a Pirata sorria, porque sabia, no âmago de seu ser, que aquele não seria o seu último encontro com a Protetora.
Espero que tenha gostado! Escrevi essa história para um edital de publicação e acabei não sendo aceita (acontece, tô acostumada!), e realmente não sei porque mantive ela guardada até agora… adoro o conteico da Guerra Temporal, talvez elabore mais ela em contos futuros.
Lembrando que esse foi só um extra, ainda teremos o conto desse mês - que agora tem nome! “Lua crescente” chega em breve, trazendo a história de Kale e Eric:A
Que ventos tranquilos conduzam sua passagem até nos econtrarmos novamente, Viajante!